NÃO CICATRIZA

Não Cicatriza é o sétimo livro de poemas de Marcelo Sandmann. Reúne textos escritos entre 2015 e 2019 e é dedicado à memória de seu pai, Antônio José Sandmann. 

Como avalia Dala Stella na apresentação do livro: “Não cicatriza responde à dureza do tempo presente com uma sobriedade igualmente violenta, negando-se no entanto a toda sorte de excessos.” O antropólogo Hermano Vianna, na orelha do livro, assevera: “Dentro de sua cápsula de delicadeza extrema este livro contém uma violência incandescente. Beleza assustadora. Poesia no duro, na ‘dura treva’ (e foi escrito antes da pandemia).” Não cicatriza consolida Marcelo Sandmann como um dos nomes significativos da poesia brasileira contemporânea.

Não cicatriza responde à dureza do tempo presente com uma sobriedade igualmente violenta, negando-se no entanto a toda sorte de excessos. Seus poemas são justos, dolorosamente justos. Não se espere encontrar neles delicadezas; é de fatalidades que eles são feitos.

Os verbos avultam, duros, ásperos, austeros. São eles que muitas vezes guiam os versos em verticalidades que procuram compatibilizar a dureza do mundo a uma certa suavidade áspera com que seria possível apreendê-lo. Mas essa suavidade entrevista está sempre fora do alcance. Como se houvesse um comprazimento vigilante em romper “o fino fio que liga o corpo à fantasia”, à qual a vida o cruento da vida, se opõe.

Nesses poemas, cada palavre é uma pedra; somos convidados portanto“a mastigar palavras/para que quebrem os dentes”. Tudo passa por esse processo de inversão, não é mais “com palavras que se faz um poema, /mas com o que está/ no avesso delas”.

Até que o humor dê o ar de sua graça, abrandando esse tensionamento contínuo. Mas mesmo o humor divide pela parede e meia com a ironia, como nos poucos poemas que tratam do amor, a anos luz de serem sentimentais: “Meu amor é cáctus:/eu deixo de pôr água, /logo ele floresce”.

Por um momento somos tentados a ver dualidades no decorrer dos poemas, como se o poeta estivesse investigando o que vai de permeio, “entre o sopro / e o apagar da vela”, “entre o tiro/ e o tombar da presa”, “entre a vida/ e o viver deveras”. Mas não é nesse interregno que o essencial se dá.

Tematicamente, a essência é esse desabrigo constante, chegando pela tevê, pela internet, pelas janelas, pelas paredes que dividem os apartamentos, ao qual só é possível reagir promovendo um permanente esvaziamento do sentido instituído, incluído o das figuras de linguagem.  Decorre dessa atitude uma lírica de guerra, de contínuo estado de alerta, com o mundo que nos cerca e com o poeta ele mesmo.

Do ponto de vista da artesania, o essencial está mesmo à superfície, na justeza da manipulação das palavras, nos cortes exatos, nas sínteses irrevogáveis. Cada poema é um corpo verbal de sentir e pensar, com estrutura própria, autônomos todos, mas imbuídos da mesma dinâmica do mesmo rigor.

O resultado são poemas de uma lucidez sem remédio, sem consolo, poemas que celebram a vida no ato em que ela se dá, nem no passado, como lembrança, nem no futuro como desejo.

O passado está presente, sim, nos poemas sobre o Alzheimer do pai, mas é o presente que a desolação do abandono involuntário pode ser reparada, não como consolo, que o poeta despreza, mas como reparação verbal de uma realidade dolorosa e fugidia.

Também o futuro aparece, às vezes, mas sempre com miragem de um nirvana momentâneo, quando o corpo “abraça o mar” e a alma finalmente dá-se “límpida, como um lago/ao pé da serra”. Sempre a água, como símbolo desse apaziguamento momentaneamente possível, mesmo a água da piscina, com cloro, azulejos sujos, e o “sabor de outros corpos, / seus sonhos e secreções”.

Como poeta é também músico, autor de canções, a música, a par da água doce e salgada, instaura, igualmente, uma reparação das perdas, criando um novo espaço “por dentro, melhor de habilitar este tempo e lugar”.

Graças a essa reparação, seja pela música, seja pela natureza, é possível ser “quase feliz”. Mas quase não dura muito tempo. O que fica é o poder reparador da vastidão de nosso pequeno mundo pela palavra. Com ela, embora a vida seja ferida que arde, “ardendo/cicatriza”.

Carlos Dala Stella.

 Contempladas:

Celia Regina Neres Marques – CMEI Maria Antônia Schuartz  

Michele Meira Pinto - E.M. Ayrton Senna da Silva 

Rute K Palmeira – E M Senador Enéas Faria